Fotografia: Tony Lindner
Arnaldo Jabor em 29/04/2008 em O Globo
A crise mundial terá seu lado bom
Vivemos à espera de um `crash´que não chega nunca
A final de contas, quando começa a crise mundial, o novo crash, anunciado e garantido, o tal crash nos mercados, a inflação mundial de alimentos, o caos, a recessão? Quando? Falam, falam, e o capitalismo bombando… E se o crash, a grande crise, vier, que será de nós? Bem… a crise pode ser um thriller em nossas vidas. Como chamá-la? A pós-pós-modernidade? O pós-apocalipse? A “desglobalização”? A única coisa que não será “pós” é a burguesia, claro. Não há pós-burguesia.
E, como dizem os chineses, (que podem até deflagrar este novo crash), “toda crise tem o seu lado bom”. Um crash pode ser bom para nos iludir e dar a sensação de que a vida muda, de que a História anda. Pode nos ensinar que não há sentido no progresso, nem “eterno retorno” nem lógica alguma; o mundo se move em pinguepongue eterno e injusto. O crash (ou crise) mostrará que nada tem fim. Nem começo. Pode nos acender brios e estimular a luta pela sobrevivência, em vez desta pasmaceira abobalhada em que vivemos. Pode nos ensinar a ver a verdade de cabeça para baixo, pelo que perdemos. A crise poderá desmoralizar a ópera-bufa em que vivemos e trazer a tragédia real.
Para o Brasil, poderá ser o contato com um caos mais explícito. Há anos que falamos nele sem saboreá-lo. Se bem que o caos é mais anglosaxônico. O pântano é mais Brasil. Temos o pântano, o brejo (para onde a vaca vai), coisa mais nossa, mais “saudades do matão”, com sapos coaxando. A crise pode acabar com as ilusões do povo e estimular maior vigilância crítica. Uma bela crise mundial poderá acabar com o nosso delírio de “futuro” e nos trazer o doce, o essencial presente. A crise ensinará que muito mais importante do que estudar a miséria do país é estudar a “riqueza” do país. A miséria nasce de nosso tipo de “riqueza”. Nossa crise nasce nos intestinos das classes altas.
Uma crise mundial nos ensinará que ninguém é “revolucionário” ou “herói” ou “comandante supremo” ou “companheiro” ou outros falsos caracteres; o que há são narcisistas, compulsivos, agressivos, paranóicos, invejosos, fracassados, com problemas sexuais. A crise ensina mais Freud do que Marx. Uma bela crise ou um magnífico crash poderá nos revelar muitos tipos humanos. No desespero do drama, veremos as galerias de personas, de máscaras, de bonecos de engonço, de mamulengos, teremos um reality show sobre o Brasil, teremos o desfile de caras e bocas retorcidas, de mãos trêmulas, de risos e choros constrangidos, teremos as vaidades na fogueira, os apelos à razão falida, teremos os clamores de honradez mentida, os falsos testemunhos, os tratamentos arcaicos, teremos as vossas excelências murchas, as vossas sujas senhorias, veremos os alicerces do país apodrecendo, a lama debaixo das dignidades, veremos nossos pés-de-barro, os nósnatripa, veremos os apêndices supurados, os miasmas que nos envenenam aparecendo sob a barra da saia de juízes e desembargadores, as sujeiras escorrendo sob as frestas da lei. E tudo nos diplomará em Ciência Política. O crash é bom para o contato com o absurdo.
Nesse sentido o crash é filosófico. Ficaremos mais espiritualizados com o crash. Ocrash vai apagar um pouco o sorriso dos colunáveis sorrindo nas revistas. O crash vai provocar uma onda de suicídios milionários diante dos olhos calmos dos miseráveis vingados. Com menos importação de BMWs, vai melhorar o trânsito em São Paulo. O crash vai instalar humildade nas almas yuppies. Vai acabar com suspensórios floridos e gravatas de pintinhas… Num primeiro momento, o horror: bolsas caindo, grana sumindo. Depois, a paz inevitável, a calma da desgraça assumida — vejam o rosto pacífico dos famintos do Sudão. A fome traz uma paz desesperançada. O crash trará uma súbita revivência de faquires. O crash vai mostrar que a voracidade consumista não é a única maneira de viver. Vai nos fazer mais magros e mais frugais. Ficaremos mais elegantes com o crash. Crash chique.
O crash é bom porque vai reviver a poesia, a arte, mortas pelo mercado. O crash se rá uma renascença. Haverá uma estética do crash. Os filmes americanos ficarão felizes e musicais como no tempo do crash de 29. Fred Astaire vai dançar com Ginger Rogers de novo. O crash vai acabar com os “Titanics”, graças a Deus. O crash vai nos livrar dos grandes shows de rock, das bandas revoltadas, vai nos livrar dos World Trade Centers, dos best-sellers, das supercervejarias, dos fashion weeks sem fim. Com a nova guerra fria entre russos e americanos, indianos e paquistaneses, Oriente e Ocidente usando antraz contra Tomahawks, teremos a restauração da beleza da morte e não mais sua banalização pelos Van Dammes e Stallones.
O crash vai criar escolas filosóficas: o “pirronismo” absoluto, a escatologia escatológica: “a merda está no fim da História” (uma espécie de Hegel de marcha a ré). Sem consumo, o crash vai estimular o sexo… já que não teremos nada a fazer. O crash vai parir babycrashers, os filhos da crise. E também vai justificar broxadas: “Minha filha…
desculpe… é o crash”. O crash vai acabar com o grande movimento em aeroportos e diminuirá sensivelmente o número de barrigudos falando alto em celulares. O crash fecha Miami. O crash vai acabar com palavras como globalização, livre mercado, competitividade, desregulamentação, qualidade total, neodarwinismo. O mundo terá um downsizing. O crash vai restaurar o amor ao simples, ao possível, ao carrinho de carretel, à pipa, ao pião, em vez dos blueber ries. O crash é retrô, delicioso. O crash vai nos trazer a sadia tristeza, vai nos tirar desta ansiedade cansativa e nos dar finalmente a repousante depressão.